quarta-feira, janeiro 12, 2005

Livros de Viagens (002)

Ébano, Ryszard Kapuscinski (Polónia, 1998)


Ébano - Diversas Edições Posted by Hello

Este é o melhor livro que algum homem branco jamais escreveu sobre África.

Talvez não seja um “livro de viagens” no sentido mais clássico do termo; pelo menos, as viagens aqui contadas nunca poderiam ser feitas por qualquer pessoa (ao contrário dos relatos de, por exemplo, Javier Reverte, Bill Bryson ou Nick Middleton, que podem ser emulados). Mas ao longo de uma carreira de “grande repórter” e/ou correspondente da agência noticiosa oficial polaca, durante toda a época do Pacto de Varsóvia (!), Kapuscinski foi vivendo experiências extraordinárias no continente africano e tomando notas.

Dessas notas resultaram 3 livros: A Guerra do Futebol (não sei se está traduzido em português, o que li ou melhor, ouvi, foi a versão inglesa), que trata de vivências na América Latina e em África; Outro Dia de Vida (idém; sobre os últimos dias da Angola colonial e os primeiros dias da nova realidade do país); e este, que é uma obra-prima.

O relato do abandono de Luanda pelos portugueses em “Outro Dia de Vida” é uma das reportagens mais poderosas que li.

“The building of the wooden city, the city of crates, goes on day after day, from dawn to twilight. Everyone works, soaked with rain, burned by the sun; even the millionaires, if they are physically fit, turn to the task (...) Nowhere else in the world had I seen such a city, and I may never see anything like it again. It existed for months, and then it suddenly began disappearing. Or rather, quarter by quarter, it was taken on trucks to the port. Now it was spread out at the very edge of the sea, illuminated at night by harbour lanterns and the glare of lights on anchored ships. (...) But afterwards (...) the wooden city sailed away on the ocean. It was carried off by a great flotilla with which, after several hours, it disappeared below the horizon. (...) I managed to see how the city sailed away.”

Em Ébano, às experiências extraodinárias vividas num continente que com as independências começava a entrar numa degradação imediata e imparável, o autor alia uma qualidade de escrita encantatória.

“Subimos para o autocarro e ocupamos o nosso lugar. Em momentos como este pode dar-se o confronto entre duas culturas, a colisão, o conflito. Isso acontece quando o passageiro é um recém-chegado que não conhece África. Uma pessoa assim começa a inquetar-se e a olhar à sua volta perguntando: «Quando parte o autocarro»? «O que é que quer dizer com ‘quando’?», responde o motorista surpreendido. «Quando os lugares estiverem todos ocupados.» (...) Daí que um africano, depois de entrar num autocarro, nunca pergunte quando vai partir; entra, senta-se num lugar livre e passa imediatamente a um estado no qual passa uma grande parte da sua vida - à espera. «Estas pessoas possuem uma capacidade fantástica de esperar!» (...)”

Javier Reverte é um dos que considera Kapuscinski uma das suas referências absolutas. Li em tempos uma crítica no Economist, onde o autor, um ex-correspondente que seguramente passou o seu tempo em África em hotéis e bairros de luxo, isolado da realidade o mais possível, reconhecia com evidente dor de cotovelo que “as literature, ‘The Shadow of the Sun’ is in its way magnificent”, mas rematava com uma observação intrigante: “he creates an Africa of his own. It is a fascinating place. Whether it ever existed as he tells it is another matter altogether.”

Existe sim. Como existe...