Algo que me escapa de todo é o critério (?) habitualmente usado pelas revistas de viagens portuguesas na selecção dos hotéis sobre os quais escrevem os artigos de fundo. Especificamente, a escolha sistemática de hotéis com preços estratosféricos.
Por exemplo, a Evasões -- uma revista de que semprei gostei, e que tem contribuído para a minha qualidade de vida quando estou em Portugal, quer quando era dirigida pela Senhora Luísa Jacobetty quer agora, sob a responsabilidade de José Jaime Costa -- publicou recentemente um longo artigo sobre o Mercer.
Vou a Nova Iorque em breve e não vou ficar no "Hotel (The Mercer)", como eles o põem.
Em 2003 fiz 4 viagens aos Estados Unidos, sempre na
Continental. O vôo directo diário que a Continental tem entre Newark (EWR) e Lisboa (LIS) usa um avião relativamente pequeno (um
767-200ER) que vai quase sempre nos dois sentidos em
overbooking e se enche com meses de antecedência. Com a operação de Lisboa, a Continental não deve perder dinheiro.
Num segmento EWR/LIS que eu era suposto utilizar, o número de passageiros presentes com OK para o vôo excedia largamente a capacidade do avião (o
yield management tem deste problemas), pelo que para a respectiva resolução, os funcionários aplicaram o "processo". Ou seja, tratando-se de uma companhia aérea à séria, começaram por perguntar se havia voluntários para apanhar outro vôo, no dia seguinte, em troca de:
- um voucher de 500 dólares para ser usado numa futura viagem na Continental, válido por um ano;
- vouchers para ajudar a pagar o jantar nesse dia e pequeno-almoço no dia seguinte, num valor irrisório;
- estada grátis num hotel barato, mas aceitável, perto do aeroporto.
Ofereci-me como voluntário e passei mais um dia em Nova Iorque. O vôo no dia seguinte foi via Paris e o segmento entre o Charles de Gaulle e Lisboa foi na Air France (e por sorte, em executiva).
Apesar de já ter passado mais de um ano, a viagem que vou fazer agora a Nova Iorque com a minha mulher é graças ao referido voucher e a 40.000 milhas da SkyTeam (vamos partir de Madrid, que a Continental serve com Boeings 777-200ER, aviões modernos e confortáveis equipados nomeadamente com ecrãs de televisão em todos os lugares da económica).
O custo total dos bilhetes foi de uns 180 euros (dos quais uns 20 para as taxas de aeroporto do bilhete-prémio, sendo o resto a diferença entre o preço do bilhete elegível e o valor do voucher; note-se que os bilhetes-prémio da TAP andam pelos 50 euros). Vamos estar em NYC entre dia 20 e dia 23 (3 noites de estada).
De acordo com o TabletHotels.com, nestes dias um quarto standard no The Mercer custa 450 dólares (mais "tax specification: 13.25% + $2.00 per day occupancy tax - not included").
Eu gostava de ter o privilégio de conhecer gente com o perfil de leitor que a Evasões identificou para os seus clientes. E pelos vistos, haverá milhares deles por aí, o suficiente para justificar a tiragem e viabilidade da revista...
Quer dizer, eu compreendo que a componente de sonho é relevante, mas parece-me que umas informações minimamente úteis seriam bem-vindas de vez em quando. Indicar o Mercer como opção de alojamento numa visita a Nova Iorque não é útil; a mim, no quadro dos leitores que imagino para a revista, parece-me um tiro no pé, mais uma questão de self-serving que propriamente um serviço aos leitores.
Mas posso estar enganado. E aliás, como diz o Jerry Pournelle, "never attribute to malice that which is adequately explained by incompetence."
Enfim, com isto tudo, onde é que eu e ela vamos ficar?
Num hotel "produced by Ian Schrager and designed par Philippe Starck", por 143 dólares (mais taxas) por dia num quarto superior (quarto standard: 118 dólares/dia). Sim, três dias no meu Deluxe King Room no Paramount vão-me custar menos do que um dia no Mercer. Talvez os meus 3 dias aqui valham menos do que um dia no "Hotel (The Mercer)", mas: um, tenho as minhas dúvidas; dois, isto consigo pagar realisticamente sem ter de penhorar o futuro das crianças; e três, o meu caso não deve ser único, digo eu...
O Paramount foi o terceiro hotel que Schrager abriu em Manhattan, há já bem mais de 10 anos, pelo que não já não é news. Pertenceu ao seu portfolio (sempre como uma propriedade de referência) até o ano passado, tendo sido reformado pela última vez em 1998.
Reuni alguns comentários sobre o hotel. Por exemplo, uma jornalista inglesa que entrevistou o hoteleiro em 2002: "His bathrooms certainly can provoke, but not necessarily in the exciting way their maker intends. I can still recall my first encounter with the beautiful but baffling taps in the ladies at the Paramount - Schrager’s third hotel to open in Manhattan. By the time I had figured out how to get the water to flow, I had been joined by a posse of women (sharp, savvy New Yorkers) who were equally nonplussed."
Uma crítica ao hotel no Sunday Times (de 2001) : "What’s the story? An art-nouveau hotel just off Times Square, the Paramount is popular with British indie bands such as Manic Street Preachers and Belle & Sebastian. Many like to hang out in the Philippe Starck-designed lobby. Go to the Whiskey Bar, if only to see the amazing waitresses. What’s it like now? Although the action has moved slightly to the Mercer (where Fatboy Slim and Robbie Williams were spotted playing Scrabble in the lobby), the Paramount is still a hive of rock’n’roll activity. The lobby is sumptuous, but some of the rooms are cramped. Do: drink in the Whiskey Bar. Even the stars ogle. Don’t: take a cat. You may not be able to swing it. Excess rating: 7/10."
Andréia Azevedo Soares no Público (Fugas, também em 2001): "Quartos chiquérrimos, decorados pelo famoso designer Philippe Stark. Pena que todo esse conforto venha incluído na conta."
Um aviso en passant numa crítica ao Le Pergolèse: "Though it can't compete for location with its Design Hotels Parisian stablemates, Monna Lisa and Buci Latin, being just off Avenue de la Grand Armée, Pergolese wins our praise for proving that chic isn't inevitably transformed into shabby after a few years of being knocked around by hotel guests (as happened very rapidly to Schrager's all-white Paramount rooms in New York)."
(Espero que de 2001 até agora, os quartos chiquérrimos que a Andréa viu, mais de 10 anos depois do hotel ter sido inaugurado, não tenham ficado tão degradados quanto isso, apesar de nestes tempos o conforto já não vir tão incluído na conta.)
O ano passado, Ian Schrager vendeu o Paramount ao Grupo Rank, que vai usar o edifício para fazer nele o Hard Rock Hotel de Nova Iorque (a gestão dos hotéis Hard Rock é da responsabilidade da Sol Melia, que já se ocupa do Paramount). Como o hoteleiro tem o Hudson mais ou menos nas redondezas, vender o Paramount (por mais de 125 milhões de dólares) foi uma forma de se livrar de um factor de autofagismo, concentrar-se no que está verdadeiramente a dar (ou seja, cobrar no Hudson mais de 40 contos por noite por um quarto em que uma pessoa tem de passar por cima de quem o acompanhe, para chegar à casa de banho), pagar parte das dívidas e arranjar tesouraria para dar uma volta a um dos símbolos mais perenes do panorama hoteleiro da cidade.
Esta situação abriu-me uma janela de oportunidade. Enquanto o Hard Rock não nasce, o Paramount vai existindo e é assim que se pode estar num design hotel no putativo centro de Manhattan, finalmente gerido profissionalmente, por menos de 100 euros por dia (ou pagar um pouco mais como eu, pelo privilégio de mais espaço).
Mas este é precisamente o tipo de conhecimento que não é possível obter através de nenhuma das revistas de viagens que se publicam por aqui...
Paramount Hotel, 235 West 46th Street, New York, NY 10036; 00 1 212 764 5500 . reservar no Quikbook uma estada de pelo menos 3 dias e aproveitar enquanto dura...
"Ground Zero", 9 de Setembro de 2003